terça-feira, 13 de janeiro de 2015

"Acredita em Deus quer dizer, em Jeová?" 
O meu pai sempre me ensinou que estudar o Talmud era a forma de nos aproximarmos a Deus,  e lhe falarmos de alma e coração aberto. Ele era o rabi da sinagoga da nossa aldeia, uma pequena aldeia nos arredores da Checoslováquia e incutiu-me desde tenra idade a devoção e amor que deveríamos ter por Deus, pois Ele é nosso pai e merece que nos entreguemos totalmente à Sua mercê. Estudei as sagradas escrituras com o objetivo de um dia seguir as suas pisadas e ser também um rabi, que a meu ver era o compromisso supremo que o Homem podia ter com Deus. E assim se passou a minha infância. Estudar, jejuar e estudar de novo. 
Estávamos em fins de 1940tinha eu acabados de fazer 16 anos, e estava em casa com a minha família a celebrar o jantar de Shabat, quando de súbito ecoou pela casa o som ensurdecedor de um apito. Levantei-me e fui à janela para tentar ver o que era quando surgiram do horizonte dezenas de soldados com uniformes esverdeados e armados até aos dentes. Eram soldados alemães. A minha mãe aproximou-se e ao se aperceber da situação rapidamente correu para o quarto e escondeu todas as joias numa tábua solta do soalho do chão. O meu pequeno irmãozinho chorava com o barulho dos tiros e os gritos que entretanto se começavam a ouvir do lado de fora de casa e o meu pai permaneceu sentado, inerte, e apenas disse "devíamos ter fugido enquanto tivemos tempo". O tema mais falado nas semanas anteriores pela aldeia diariamente era a guerra e as constantes questões de "será que nos invadirão a seguir?", mas nunca ninguém achara mesmo que tal acontecesse, devido a sermos uma aldeia pequena sem ligações políticas ou importância, e vivíamos assim, cientes do perigo eminente mas demasiado cegos para realmente o sentir. E agora que estava ao alcance de uma mão, esse perigo, realmente nos apercebemos do quão ingênuos fomos em relação a Hitler e o seu exército. Ouviram-se passos cada vez mais perto e de súbito 2 soldados entraram de rompante pela casa e agarraram a minha mãe enquanto apontavam grandes armas ao meu pai, e arrastaram-nos a todos para fora de casa até uma fila cheia de pessoas assustadas no meio da praça, pessoas que outrora foram nossos amigos e vizinhos, todas juntas a partilhar o mesmo pavor.Devemos ter ficado nessa fila horas a fio até os soldados terem evacuado toda a gente das suas casa que agora já não eram suas, quando um deles gritou a alto e bom som "mulheres para a esquerda, homens para a direita" e o pânico instalou-se entre todos. Famílias separadas, crianças a chorar. A minha mãe agarrou-me pelo braço a tremer e apenas me disse "toma conta do teu irmão Idek", enquanto um soldado a puxava para uma fila contrária. Essa foi a última vez que a vi com vida.Aconteceu tudo tão rápido e no entanto lembro-me perfeitamente de ver a situação em câmara lenta. Fiquei junto do meu pai e do meu irmão enquanto fomos levados até grandes vagões de comboio, donde partimos para um campo de trabalho na Bélgica, "Breendonk" , ao qual a viagem durou pouco mais de 3 semanas, sem que uma única vez nos fosse dada água ou comida. Para além da falta de alimento, o cheiro e calor eram insuportáveis, devido ao excesso de carga do vagão.De cada vez que o comboio parava, pelo menos 10 pessoas ficavam na "estação" falecendo pela fome, ou desidratação. O meu irmão foi um dos que não resistiu, sendo pequeno e fraco, sucumbiu à fome. Lidei bastante mal com a sua morte mas sendo eu devoto a Deus, nunca questionei o seu plano, e ao chegarmos ao campo e a todo o caos que este emanava, sempre lhe agradeci por passar eu e o meu pai mais um dia vivos, mais um dia com pão, mais um dia em que as sovas ou o trabalho desgastante não nos colhiam. Mais um dia sem sairmos pela chaminé. Mas o meu pai já era velho. E não resistiu à doença. A febre do tifo foi a sua partida definitiva. E nessa altura pela primeira vez senti raiva. Senti uma raiva genuína de Deus. Se ele nos ama, se somos nós o povo escolhido, porquê fazer os inocentes sofrer? Qual é a recompensa na injustiça? Deixar-nos apodrecer nestes campos, deixar o nosso sangue jorrar pela diversão alheia era necessário para Ele? O que fizeram os Judeus que sempre O adoraram?E senti que algo na minha alma partiu com o meu pai. A minha fé foi drenada de mim e a partir desse dia, do dia em que o tentei acordar quando ele já não podia fazê-lo, deixei de acreditar. Porque acreditar seria celebrar o plano de um sádico e eu ainda me sentia demasiado humano, apesar de não ser tratado como um, para sucumbir também. Sobrevivi ao Holocausto, o meu campo foi libertado em 1944 e fugi para os E.U.A. Sobrevivi ao caos, à perda, e aos meus próprios limites enquanto humano e no entanto, algo morreu em mim, algo que até hoje não consegui reavivar. Deus morreu em mim.

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