Nasci no ano de 1898. No seio de
uma família abastada do Norte. Passei os meus primeiros anos de vida numa
pequena aldeia, rodeada por animais, natureza e miséria. Não vou mentir, o nome
da aldeia há muito me escapou da memória e agora não tenho ninguém a quem o
perguntar. Porém, ainda tenho gravada na memória os dias passados a brincar na
rua, sem preocupações. Invejo a minha inocência na altura. Naqueles tempos, não
reparava que os meus amigos usavam a mesma roupa todos os dias, não reparava
que não iam à escola como eu, não reparava nos seus ossos que espreitavam pela
pele. Arrependo-me de não ter partilhado os bolos que me enchiam a barriga.
Contudo, não me censuro. Como poderia saber que eles não os tinham em casa,
quando na minha eram abundantes?
Tinha eu dez anos quando minha mãe foi levada pela tuberculose. Ainda hoje tenho uma sensação de vazio. Chorei durante três dias. Até que ao quarto, reparei que o meu pai sofria mais do que eu. Era médico. Na altura não percebi, agora, entendo que o facto de não a ter conseguido salvar foi demasiado para tolerar. Seis meses depois, abandonamos a nossa acolhedora casa com rumo à cidade do Porto.
Tinha eu dez anos quando minha mãe foi levada pela tuberculose. Ainda hoje tenho uma sensação de vazio. Chorei durante três dias. Até que ao quarto, reparei que o meu pai sofria mais do que eu. Era médico. Na altura não percebi, agora, entendo que o facto de não a ter conseguido salvar foi demasiado para tolerar. Seis meses depois, abandonamos a nossa acolhedora casa com rumo à cidade do Porto.
Decorria o ano de 1909, o atentado a D. Carlos
tinha sido há poucos meses, e no ar da grande cidade sentia-se a instabilidade.
Era muito nova para perceber política, no entanto uma palavra era constante
"republicano". Meu pai, um homem de rotinas, sempre bem disposto,
continuava num estado de sonambulismo. Por esta razão, a minha tia, irmã de
minha mãe e mãe de cinco, ficou encarregue da minha educação. Tratou-me como se
fosse a sua sexta filha. Como criança que era, não compreendia porque é que o
meu pai já não me sorria como costumava, porque é que não me lia à noite como a
minha mãe fazia. Tinha catorze anos quando o meu pai acordou. Lembro-me desse
dia com um grande carinho. Cheguei a casa, vinda da escola, quando ele me
recebeu com um grande abraço. Nessa noite, cozinhou o seu aclamado cozido à
portuguesa. Foi a primeira vez que me senti realmente feliz em muitos anos.
Passaram uns meses, o meu pai tinha voltado a exercer, estava tudo a voltar ao
normal. Até que um dia, ele me anunciou que se tinha juntado à causa
republicana. A República ainda era nova e incerta, tendo apenas dois anos,
ainda existiam grupos monárquicos, e haviam constantes ataques de ambos os
lados. Fiquei preocupada. Tinha sido protegida toda a minha vida. Andava numa
escola privada católica. E minha tia tinha garantido que todos os meus
conhecimentos pertenciam à alta sociedade portuense. Os meus amigos já não eram
miúdos esfomeados, mas filhos de médicos e advogados. Não consegui perceber
porque é que o meu pai se queria envolver na coisa suja que era a política.
Mais dois anos passaram, estávamos agora no ano de 1914. A Segunda Guerra Mundial tinha-se apoderado da Europa. Era um Verão quente. O meu pai tinha ascendido politicamente e era um dos homens mais próximos de Bernardino Machado, por esta razão não se pôde afastar da cidade. Assim, fiquei de férias “presa” no Porto. Passeava pela cidade durante o dia. Foi num desses dias, na livraria Lello, um dos meus locais favoritos, que o conheci. Todos momentos, todas as pessoas que passaram pela minha vida, nenhuma foi tão marcante como ele. Estava encostado a uma estante, com um ar despreocupado, natural. Viu-me e sorriu. Senti-me corar. Ele veio falar comigo. Apartir daí tudo se desenrolou.
Mais dois anos passaram, estávamos agora no ano de 1914. A Segunda Guerra Mundial tinha-se apoderado da Europa. Era um Verão quente. O meu pai tinha ascendido politicamente e era um dos homens mais próximos de Bernardino Machado, por esta razão não se pôde afastar da cidade. Assim, fiquei de férias “presa” no Porto. Passeava pela cidade durante o dia. Foi num desses dias, na livraria Lello, um dos meus locais favoritos, que o conheci. Todos momentos, todas as pessoas que passaram pela minha vida, nenhuma foi tão marcante como ele. Estava encostado a uma estante, com um ar despreocupado, natural. Viu-me e sorriu. Senti-me corar. Ele veio falar comigo. Apartir daí tudo se desenrolou.
No ano seguinte o meu pai morreu,
ataque cardíaco, disseram. Não derramei uma única lágrima. O vazio no meu
coração aumentou. Mudei-me para casa da minha tia. A solidão apoderou-se de
mim. Não tinha ninguém, era orfã. Demorei meses a recompor-me. Tinha dezoito
anos na altura. Finalmente tornei-me mulher. Até então agarrara-me à minha
meninice. Porém, após perder todos os que eram mais queridos, já não me sentia
mais aquela rapariga inocente e amável. Engravidei. Fui expulsa de casa da
minha tia e casei-me.
O meu bebé nasceu no dia 14 de
Março de 1917. Mais uma vez encontrei a felicidade. Não consigo descrever o
sentimento de ter o pequeno rebento do nosso amor nos meus braços. Éramos uma
família feliz. Como sempre na minha vida, a felicidade durou pouco. Em Junho,
ele foi recrutado para a guerra e partiu para a Flandres. Foi assim que perdi o amor da minha vida.
Ele voltou um ano depois, a 17 de
Novembro. Contudo, os demónios da guerra perseguiam-no. Pouco depois do seu
regresso, deixei cair um prato, ele começou a gritar desvairado e atirou-se ao
chão. Deitei-me ao lado dele e abracei-o até que acordei o dia seguinte.
Diversos acidentes do tipo se sucederam. Ele não conseguia ser nem marido nem
pai. Era um miúdo desorientado e torturado. Na altura, dei graças ao dinheiro
que tinha herdado do meu pai. Sem ele não sei como tínhamos conseguido sobreviver.
A vida de luxo há muito tinha desaparecido. Agora, vivíamos num pequeno
apartamento. Passaram três anos até que, pela primeira vez, ele pegou no filho.
Foi com grande espanto que o encontrei a embalá-lo. Até então, tinha-lhe apenas
pegado na mão, ou feito uma pequena festa na cabeça. Penso que tivesse medo de
o magoar. Encarei aquele pequeno momento como um sinal de mudança, de que ele
estava a melhorar. Foi nessa altura que voltamos a ser marido e mulher.
Em 1923, fui mãe pela segunda
vez. A nossa relação estava longe de ser a relação apaixonada que era antes da
guerra. Porém, lentamente os pequenos gestos carinhosos voltavam à nossa
rotina.
Considero que os anos que se
seguiram não foram relevantes, mais do mesmo, me atreverei a dizer: filhos,
casamento, problemas económicos, ditadura, pequenos surtos e lembranças da
guerra. Problemas que se poderiam observar na maioria das famílias da nossa
geração. Penso que foram todos os percalços que tive na vida que me tornaram o
que sou hoje, uma mulher forte. Foram
todos os momentos de miséria que me levaram a querer fazer o bem e a não
desistir de lutar pelas minhas convicções. Também tenho que agradecer ao meu
marido, foi ele que me fez amadurecer, me abriu a novas ideias e realidades.
Foi uma relação difícil, não minto, mas foi o amor da minha vida. Hoje, dia 25
de abril de 1975, com 77 anos, vou votar pela primeira vez e fá-lo-ei com a
memória do meu pai e do que defendia na memória.
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