sábado, 17 de janeiro de 2015

A minha vida



               Nasci no ano de 1898. No seio de uma família abastada do Norte. Passei os meus primeiros anos de vida numa pequena aldeia, rodeada por animais, natureza e miséria. Não vou mentir, o nome da aldeia há muito me escapou da memória e agora não tenho ninguém a quem o perguntar. Porém, ainda tenho gravada na memória os dias passados a brincar na rua, sem preocupações. Invejo a minha inocência na altura. Naqueles tempos, não reparava que os meus amigos usavam a mesma roupa todos os dias, não reparava que não iam à escola como eu, não reparava nos seus ossos que espreitavam pela pele. Arrependo-me de não ter partilhado os bolos que me enchiam a barriga. Contudo, não me censuro. Como poderia saber que eles não os tinham em casa, quando na minha eram abundantes? 
               Tinha eu dez anos quando minha mãe foi levada pela tuberculose. Ainda hoje tenho uma sensação de vazio. Chorei durante três dias. Até que ao quarto, reparei que o meu pai sofria mais do que eu. Era médico. Na altura não percebi, agora, entendo que o facto de não a ter conseguido salvar foi demasiado para tolerar. Seis meses depois, abandonamos a nossa acolhedora casa com rumo à cidade do Porto.
                Decorria o ano de 1909, o atentado a D. Carlos tinha sido há poucos meses, e no ar da grande cidade sentia-se a instabilidade. Era muito nova para perceber política, no entanto uma palavra era constante "republicano". Meu pai, um homem de rotinas, sempre bem disposto, continuava num estado de sonambulismo. Por esta razão, a minha tia, irmã de minha mãe e mãe de cinco, ficou encarregue da minha educação. Tratou-me como se fosse a sua sexta filha. Como criança que era, não compreendia porque é que o meu pai já não me sorria como costumava, porque é que não me lia à noite como a minha mãe fazia. Tinha catorze anos quando o meu pai acordou. Lembro-me desse dia com um grande carinho. Cheguei a casa, vinda da escola, quando ele me recebeu com um grande abraço. Nessa noite, cozinhou o seu aclamado cozido à portuguesa. Foi a primeira vez que me senti realmente feliz em muitos anos. Passaram uns meses, o meu pai tinha voltado a exercer, estava tudo a voltar ao normal. Até que um dia, ele me anunciou que se tinha juntado à causa republicana. A República ainda era nova e incerta, tendo apenas dois anos, ainda existiam grupos monárquicos, e haviam constantes ataques de ambos os lados. Fiquei preocupada. Tinha sido protegida toda a minha vida. Andava numa escola privada católica. E minha tia tinha garantido que todos os meus conhecimentos pertenciam à alta sociedade portuense. Os meus amigos já não eram miúdos esfomeados, mas filhos de médicos e advogados. Não consegui perceber porque é que o meu pai se queria envolver na coisa suja que era a política.
               Mais dois anos passaram, estávamos agora no ano de 1914. A Segunda Guerra Mundial tinha-se apoderado da Europa. Era um Verão quente. O meu pai tinha ascendido politicamente e era um dos homens mais próximos de Bernardino Machado, por esta razão não se pôde afastar da cidade. Assim, fiquei de férias “presa” no Porto. Passeava pela cidade durante o dia. Foi num desses dias, na livraria Lello, um dos meus locais favoritos, que o conheci. Todos momentos, todas as pessoas que passaram pela minha vida, nenhuma foi tão marcante como ele. Estava encostado a uma estante, com um ar despreocupado, natural. Viu-me e sorriu. Senti-me corar. Ele veio falar comigo. Apartir daí tudo se desenrolou.  
               No ano seguinte o meu pai morreu, ataque cardíaco, disseram. Não derramei uma única lágrima. O vazio no meu coração aumentou. Mudei-me para casa da minha tia. A solidão apoderou-se de mim. Não tinha ninguém, era orfã. Demorei meses a recompor-me. Tinha dezoito anos na altura. Finalmente tornei-me mulher. Até então agarrara-me à minha meninice. Porém, após perder todos os que eram mais queridos, já não me sentia mais aquela rapariga inocente e amável. Engravidei. Fui expulsa de casa da minha tia e casei-me.  
               O meu bebé nasceu no dia 14 de Março de 1917. Mais uma vez encontrei a felicidade. Não consigo descrever o sentimento de ter o pequeno rebento do nosso amor nos meus braços. Éramos uma família feliz. Como sempre na minha vida, a felicidade durou pouco. Em Junho, ele foi recrutado para a guerra e partiu para a Flandres. Foi assim que perdi o amor da minha vida.
               Ele voltou um ano depois, a 17 de Novembro. Contudo, os demónios da guerra perseguiam-no. Pouco depois do seu regresso, deixei cair um prato, ele começou a gritar desvairado e atirou-se ao chão. Deitei-me ao lado dele e abracei-o até que acordei o dia seguinte. Diversos acidentes do tipo se sucederam. Ele não conseguia ser nem marido nem pai. Era um miúdo desorientado e torturado. Na altura, dei graças ao dinheiro que tinha herdado do meu pai. Sem ele não sei como tínhamos conseguido sobreviver. A vida de luxo há muito tinha desaparecido. Agora, vivíamos num pequeno apartamento. Passaram três anos até que, pela primeira vez, ele pegou no filho. Foi com grande espanto que o encontrei a embalá-lo. Até então, tinha-lhe apenas pegado na mão, ou feito uma pequena festa na cabeça. Penso que tivesse medo de o magoar. Encarei aquele pequeno momento como um sinal de mudança, de que ele estava a melhorar. Foi nessa altura que voltamos a ser marido e mulher.
               Em 1923, fui mãe pela segunda vez. A nossa relação estava longe de ser a relação apaixonada que era antes da guerra. Porém, lentamente os pequenos gestos carinhosos voltavam à nossa rotina.
               Considero que os anos que se seguiram não foram relevantes, mais do mesmo, me atreverei a dizer: filhos, casamento, problemas económicos, ditadura, pequenos surtos e lembranças da guerra. Problemas que se poderiam observar na maioria das famílias da nossa geração. Penso que foram todos os percalços que tive na vida que me tornaram o que sou hoje, uma mulher forte.  Foram todos os momentos de miséria que me levaram a querer fazer o bem e a não desistir de lutar pelas minhas convicções. Também tenho que agradecer ao meu marido, foi ele que me fez amadurecer, me abriu a novas ideias e realidades. Foi uma relação difícil, não minto, mas foi o amor da minha vida. Hoje, dia 25 de abril de 1975, com 77 anos, vou votar pela primeira vez e fá-lo-ei com a memória do meu pai e do que defendia na memória.

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