quarta-feira, 5 de novembro de 2014


Memórias de uma vida

Quando nasci já o meu pai tinha morrido. Vivia com a minha mãe e com a sua família. Era a mais nova de quatro irmãos. A única irmã que ainda é viva leva-me cinco anos, os outros dois faleceram cedo.
Nasci em Saldanha, que era uma aldeia pequena em Trás-os-Montes, que pertencia ao concelho de Mogadouro. Eram tempos muito difíceis! A minha mãe, que nasceu em 1900, era a única na aldeia que sabia cozinhar, cozinhava para toda a gente e também para os casamentos da aldeia.

Era padeira de profissão, pois toda a sua família também o era. Quando acabei de fazer a 4ªclasse (fui a única de entre os meus irmãos e a única da minha familia) recebi o diploma, que ainda hoje recordo sempre com muito carinho. Depois, tive de ajudar a minha mãe a vender o pão. 

Ela fazia o pão em casa, e os doces, que levava depois para vender nas feiras e nós levávamos para os empregados dos caminhos-de-ferro na cidade de Variz, para onde me mudei aos 19 anos, para mais tarde sair e ir para a cidade da Guarda, terra onde vivo até hoje. Tínhamos de tudo na aldeia. Gado, terra para cultivar todo o tipo de cereais e legumes. A única coisa que íamos buscar a Espanha, atravessando o rio Douro, era café e açúcar.
Eu e os meus irmãos ajudávamos a minha mãe a matar as galinhas, os borregos para os casamentos, coisa que ainda hoje faço. Éramos muito poucos na aldeia. Cerca de 70 “fogos”, com cerca de 140 pessoas, as casas eram muito pequenas. Na aldeia não havia uma casa que tivesse casa de banho, não havia água canalizada. Para lavar a roupa, era na ribeira pois não havia as coisas modernas que há agora.

De Inverno, íamos buscar água à ribeira, em cântaros de barro que levávamos à cabeça. De Verão, como a ribeira secava tínhamos de ir buscar água aos poços. Na quaresma, tempo que durava desde o carnaval até à páscoa, não se podia comer carne. Os padres eram os únicos que podiam comer, logo a minha mãe ia levar a carne que cozinhava para a Igreja. Se as pessoas quisessem comer carne tinham de pagar a bula, senão não podiam comer.

Eram tempos difíceis, mas eu era muito feliz. Provavelmente mais feliz do que as pessoas de agora, que têm acesso a todas as tecnologias e outras coisas. Tenho muitas saudades daqueles tempos, em especial, tenho saudades da minha mãe. Muitas das coisas que sei hoje, e do que sou hoje devo a ela. Era uma mulher fantástica, trabalhadora, divertida, quem tivesse perto dela não tinha tristeza. Tudo o que aprendi dela transmiti aos meus filhos e hoje em dia transmito aos meus netos.
Agora sentada no meu sofá, com os 72 (quase 73) anos vividos, olho pela janela e vejo que o bairro para onde me mudei em jovem, o bairro que tinha uma dúzia de casas e descampados, tem agora uma centena de prédios, estradas, uma escola primária que tem até à 4º classe. Disseram-me que a aldeia onde nasci está quase deserta. A ribeira secou de vez. Já quase não há casas nenhumas. Já ninguém se conhece.

Enfim, tudo mudou. Permaneço quieta olhando a azáfama que enche as ruas do meu bairro. Apenas recordando todos os momentos que vivi naquela aldeia e os que vivi aqui com o meu marido e filhos, e os que vivo agora com os meus netos. Agora, são meras recordações que guardo com muito carinho no meu coração.

4 comentários:

  1. À exceção de pequenas falhas na colocação de pontuação (nomeadamente, das vírgulas) e de um isolado erro ortográfico ("conCelho" e não "conSelho" do Mogadouro), este texto delicia. Pelo conteúdo, sim, mas, e acima de tudo, pela certeza de que o seu autor conhece bem o "peso e a medida das palavras". Os meus Parabéns!

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    1. Agradeço-lhe a amabilidade por ter escrito elogios alusivos ao meu texto. Agradeço-lhe também pelos reparos que me fez, pois sei que para a próxima posso melhorar e assim merecer mais uma vez o seu voto de confiança.
      Muito obrigada! :)

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Corroboro a apreciação de Mariana Silva e manifesto a minha satisfação pela resposta de Victória de Melo. Venham mais Textos!

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