Flandres, 18
de Dezembro 1917
Querida,
Espero que recebas esta carta a
tempo do Natal, de momento, o facto de estar vivo é a única prenda que te posso
oferecer. Lamento só te poder dar este pedaço de papel, lamento ter-te deixado
sozinha em Portugal com um recém-nascido e sem rendimento. Mais do que tudo,
lamento não te poder abraçar.
Gostava de te poder reconfortar com
esta carta, dizer que em breve estarei em casa, vivo e de saúde. Porém, meu
amor, já não sei se estou vivo, já não sei se sou humano. Tu és o que me faz
agarrar ao que resta da minha sanidade. Preciso desesperadamente de me
confessar, preciso desesperadamente de me livrar dos fantasmas que me acordam a
meio da noite. Meu anjo, se há algo que aprendi, é que durante a guerra Deus
fecha os olhos. Por isso, restas-me tu. Nesta carta, segue a minha confissão.
Que a tua atenção e a partilha deste fardo seja a minha prenda de Natal.
As trincheiras não são um pesadelo,
não são o Inferno, são o Purgatório. Porquê? O que fizemos para merecer isto? As
caras dos homens que matei estão gravadas na minha cabeça. Não sei como
conseguirei voltar a casa, à minha vida normal. Sinto-me danificado. Depois de
viver num mundo animalesco, como poderei voltar à civilização?
Tenho medo. Tenho medo de não morrer.
Sou um ser egoísta, bem sei. No entanto, não sei como viver com tudo o que fiz
e tudo o que vi. Habituei-me a esta sinfonia de bombas, tiros e últimos
suspiros. Ah! Como contrasta com o som melodioso da tua gargalhada. A memória do
teu sorriso, dos teus olhos, do teu cheiro é o que me faz continuar a lutar e
me impede de tirar a minha própria vida.
Meu amor, perdoa-me por todos os
meus pecados. Perdoa-me por já não ser o homem por quem te apaixonaste.
Imploro-te para que compreendas os desvaneios de um homem louco que leste nesta
carta. Reza por mim.
Com amor,
o teu marido que precisa
de ti desesperadamente
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