quarta-feira, 17 de dezembro de 2014



Flandres, 18 de Dezembro 1917

Querida, 

Espero que recebas esta carta a tempo do Natal, de momento, o facto de estar vivo é a única prenda que te posso oferecer. Lamento só te poder dar este pedaço de papel, lamento ter-te deixado sozinha em Portugal com um recém-nascido e sem rendimento. Mais do que tudo, lamento não te poder abraçar.
Gostava de te poder reconfortar com esta carta, dizer que em breve estarei em casa, vivo e de saúde. Porém, meu amor, já não sei se estou vivo, já não sei se sou humano. Tu és o que me faz agarrar ao que resta da minha sanidade. Preciso desesperadamente de me confessar, preciso desesperadamente de me livrar dos fantasmas que me acordam a meio da noite. Meu anjo, se há algo que aprendi, é que durante a guerra Deus fecha os olhos. Por isso, restas-me tu. Nesta carta, segue a minha confissão. Que a tua atenção e a partilha deste fardo seja a minha prenda de Natal.
As trincheiras não são um pesadelo, não são o Inferno, são o Purgatório. Porquê? O que fizemos para merecer isto? As caras dos homens que matei estão gravadas na minha cabeça. Não sei como conseguirei voltar a casa, à minha vida normal. Sinto-me danificado. Depois de viver num mundo animalesco, como poderei voltar à civilização?
Tenho medo. Tenho medo de não morrer. Sou um ser egoísta, bem sei. No entanto, não sei como viver com tudo o que fiz e tudo o que vi. Habituei-me a esta sinfonia de bombas, tiros e últimos suspiros. Ah! Como contrasta com o som melodioso da tua gargalhada. A memória do teu sorriso, dos teus olhos, do teu cheiro é o que me faz continuar a lutar e me impede de tirar a minha própria vida.
Meu amor, perdoa-me por todos os meus pecados. Perdoa-me por já não ser o homem por quem te apaixonaste. Imploro-te para que compreendas os desvaneios de um homem louco que leste nesta carta. Reza por mim.

Com amor,
            o teu marido que precisa de ti desesperadamente

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